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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O direito como técnica na modernidade

Discutiu-se amplamente, neste mesmo espaço acadêmico, a respeito das sociedades pré-modernas, as ditas sociedades primitivas, e sua organização pautada na solidariedade mecânica. Seus reflexos no meio social consistem, sobretudo, em um direito penal predominantemente repressivo como fruto da consciência coletiva passional e movida pelas paixões. Sobre este assunto destacou-se que a ideia de Émile Durkheim não se aplica apenas às sociedades mais simples mencionadas, mas está muito presente em organizações sociais como a nossa, por exemplo, neste ano de 2011.

Paralelamente a isso, a discussão desta semana aborda não a solidariedade mecânica, mas a solidariedade orgânica, a que deve estar presente nas sociedades mais complexas, cuja diferenciação social é maior e vai muito além do grupo familiar. A consciência coletiva passional e colérica é substituída por uma consciência coletiva mais ampla e guiada muito mais pela razão.

A solidariedade orgânica ocorre à medida que a diferença se impõe e tal diversidade deixa de ser um fator de desagregação social e passa a provocar o seu equilíbrio e fortalecimento. Dessa forma, a organização social torna-se, facilmente, um ambiente harmônico, no qual a divisão do trabalho social não se resume a homens exercendo suas funções como meras engrenagens de uma máquina, mas a indivíduos que, sendo diferentes entre si, somam forças e, desempenhando suas funções, colaboram uns com os outros. É dessa cooperação que provém a analogia da solidariedade orgânica com o sistema nervoso, no qual cada órgão tem uma fisionomia própria e regula harmonicamente as funções do corpo.

Salienta-se, principalmente, o papel do direito neste contexto social. É inegável que a consciência coletiva da sociedade moderna passou a ser guiada pela razão e o principal reflexo disso é a nova posição do direito, sobretudo no que tange ao direito penal. A aplicação jurídica nas sociedades modernas (as sociedades dos contratos) passa, assim, por uma expressiva transformação, distanciando-se da emoção e da passionalidade e regendo-se pela técnica; como consequência, o direito, não mais repressivo, torna-se restitutivo.

De fato, o direito é o principal expoente da expressão da razão moderna, pois a racionalidade é evidente na aplicação de sansões restitutivas. Estas têm como intuito a reposição da ordem, a restituição do indivíduo infrator ao mundo funcional, como também ao seu ambiente de trabalho, e não a imposição do sofrimento proporcional ao dano causado, expondo o indivíduo à desonra e valendo-se da penalidade como expiação da culpa.

Como exemplo concreto deste direito restitutivo na atualidade pode-se citar as medidas alternativas para o cumprimento da pena (como o trabalho voluntário e o pagamento de cestas básicas), a recente modificação no Código Penal brasileiro (a que decidiu que quem cometer delito considerado leve só pode ser preso preventivamente se não for possível a aplicação de outra medida, sendo a prisão preventiva a última alternativa) e, até mesmo, o habeas corpus (que permite a saída do detento da penitenciária mediante o pagamento de uma quantia determinada).

Embora, muitas vezes, as medidas citadas ainda sejam alvo de críticas de muitas pessoas que as consideram insuficientes para o indivíduo delinquente “pagar pelo seu crime”, representam a mediação do direito como expressão da razão moderna e um importante passo para a consolidação do direito técnico nessas sociedades mais complexas.

Evolução do Direito e relativa estaticidade da moral

Diferentemente de sua versão primitiva, a sociedade moderna, após um processo de evolução nos papéis sociais desempenhados por cada um de seus membros, não mais é composta por indivíduos que exercem atividades semelhantes, como exposto por Durkheim.

O que ocorre, então, é uma crescente especialização dessas atividades, o que acarreta, simultaneamente, em um distanciamento e em uma interdependência (esta explicada pelo autor) dos diferentes grupos sociais.Distanciamento porque não há mais o sentimento de unidade, de consciência coletiva, uma vez que cada grupo encontra-se imerso em suas próprias funções e raramente comunga dos mesmos interesses daqueles alheios a seu núcleo social.

Com isso, o direito se torna mais amplo, frente às novas necessidades da sociedade moderna: cada indivíduo por não formar, junto com os demais, uma única consciência, possui valores e considerações que divergem sobre o que deve ou não ser objeto do direito. Este passa a se moldar para que toda a sociedade tenha assegurada sua estabilidade, respeitadas as diferenças (as quais, para Durkheim, na modernidade contribuiriam para o fortalecimento social).

Eliminada a coletividade da consciência, o resultado natural seria maior aceitação das quebras de estereótipos sociais, desde que estas não interferissem no direito dos demais. Além disso, poder-se-ia esperar um refreamento das emoções humanas através desse novo direito, já que um delito não necessariamente afetaria diretamente toda a sociedade, agora ideologicamente fragmentada.

Mera idealização. A passionalidade humana continua presente, apesar de finda a estrutura mecânica primitiva.Parece haver um “princípio da legalidade moral”, pelo qual percebemos, quanto tentamos sair dos padrões, que só são socialmente aceitas, extra-juridicamente, as condutas situadas dentro do convencional. Temos o direito de fazer, ou não, somente aquilo que esteja incluso no tradicional. E quanto maior a diferença em relação à regra, maior o desconforto das maiorias e, consequentemente, maior a repressão.Disso extraímos o fato de que, muito embora o direito respeite e preze pelo respeito das diferenças, estamos longe de fixar às consciências individuais esses mesmos valores.