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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Seu corpo, suas regras

A questão do aborto é paulatinamente discutida e colocada em pauta sob diversas perspectivas. Alguns apoiam sua legalização a fim da preservação da vida das mulheres, visto que, milhares dessas morrem todos os anos na prática de abortos clandestinos, sem os mínimos requisitos de preservação e precaução. Já outros, divergem desta opinião, alegando ser um pecado ou até mesmo um crime a prática do aborto, sob a perspectiva religiosa ou não, devido ao fato de haver meios de prevenir a gravidez ao invés de interrompe-la.
Outrossim, quando se trata da gestação de uma criança portadora de anencefalia – isto é, má formação do cérebro durante a formação embrionária, determinando a ausência total do encéfalo e da caixa craniana do feto, de forma a tornar a expectativa de vida do bebê muito curta por se tratar de uma patologia letal – o dilema sobre o aborto se torna mais complexo.
Há de se considerar, não somente a curta expectativa de vida do feto – que pode acarretar dificuldades físicas, morais e psicológicas a mãe – mas também os riscos presentes nas possíveis complicações durante a gestão. Pode ocorrer, por exemplo, o acúmulo de líquido amniótico no útero da gestante, de modo que, o bebê não seja capaz de se contrair de forma correta durante o parto, gerando hemorragias naquela durante o pós-parto. Ademais, os fetos anencéfalos tendem a se posicionar de formas anômalas durante o parto, acarretando dificuldades em seu processo.
Foi sob esta perspectiva que a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde interpôs um pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, objetivando caracterizar inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal Brasileiro que vise penalizar o aborto de fetos anencéfalos. Este pedido foi fundamentado na violação dos preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV), da liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, II) e do direito à saúde (art. 6º, caput, e art. 196), presentes na Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2012, declarou procedente este pedido, considerando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia – assim como nos casos de estrupo ou de risco evidente à vida da mulher – legal.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. (JULGADO – p.1)
Foram levados em conta o fato de que a manutenção da gestação: “resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina”. (JUGALDO – p.14)
Além disto, tem-se que:
[...] impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde – o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. (JULGADO – p.6-7)
Sobre a concepção do filósofo e sociólogo francês, Pierre Félix Bourdieu, distintas condições deveriam ser admitidas pelas decisões estabelecidas no âmbito do Direto, de forma que, não somente se considerasse o arbítrio de uma classe dominante. Assim, tem-se que o Direito determina (p.213): “universalmente ao reconhecimento por uma necessidade simultaneamente lógica e ética”. Sob esta acepção, temos que o aborto de anencéfalos deve ser analisado mediante todas suas condições – implicando na sua legalização, devido ao fato dos possíveis danos causados na gestação – e não unicamente mediante opiniões arbitrárias de indivíduos conservadores. Ademais, Bourdieu considerava relevante a adequação das normas a novas situações de modo a gerar maior viabilidade a tais circunstâncias, afirmando (p.213): “(...) no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial”. A hermenêutica jurídica utilizada para legalização do aborto no caso de fetos anencéfalos consiste exatamente na adaptação da norma a uma circunstância fundamental. Por fim, pode-se considerar sobre o pensamento de Bourdieu que o Direito, utilizado em ocasiões de incompatibilidade, deve ser responsável por definir coerentemente e imparcialmente soluções – que visem, acima de tudo, a manutenção de direitos fundamentais – de forma a criar um “novo direito” que:
[...] só tem probabilidades de êxito se as profecias, evocações criadoras, forem também, pelo menos em parte, previsões bem fundamentadas, descrições antecipadas: elas só fazem advir aquilo que anunciam [...] porque elas anunciam aquilo que está em vias de advir, o que se anuncia; elas são mais oficiais do registro civil do que parteiras da história (p.238-239)

Ao optar pela legalização do aborto de fetos anencéfalos, o STF, garantiu o direito da mulher sobre a liberdade e autonomia da vontade, sobre o direito a dignidade e sobre o direito à saúde. É necessário que este direito ainda seja expandido a outras circunstâncias, visto que isso preservaria a vida de milhares de mulheres e evitaria o lucro encima de abortos clandestinos.

(Isabela Rafael Soares - 1º ano Direito Noturno) 

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